Era uma vez....
.... uma menina pobre e sozinha, tão pobre que nem sapatos tinha. Ela morava em uma cabana, na floresta, e seu grande sonho era ter um par de sapatos vermelhos. Por isso, foi guardando todos os trapos vermelhos que encontrava, até que conseguiu fazer um par de sapatos vermelhos de pano.
Ela adorava seus sapatos, usá-los fazia com que se sentisse feliz, mesmo tendo que passar os dias procurando frutas e nozes para comer, no bosque solitário onde vivia.
Um dia....
.... ela estava andando por uma estrada, quando passou uma velha muito rica, em uma carruagem dourada. A velha parou ao lado da menina, e disse "vou levá-la para minha casa, e criá-la como minha filha". Pobre e sem esperanças, a menina aceitou o convite e foi morar na casa da velha senhora.
Ao chegar, os criados lhe deram banho, pentearam, cortaram o cabelo e vestiram com roupas novas e muito bonitas. Animada com as coisas novas, a menina nem se lembrou dos trapos que usava, nem dos seus adorados sapatinhos vermelhos. Quando, passados alguns meses, perguntou sobre eles aos criados, foi informada que a senhora havia jogado tudo no fogo, dizendo que as roupas eram imundas e os sapatos eram ridículos.
A menina ficou muito triste, porque adorava os seus sapatinhos vermelhos. Além disso, a vida nova tinha perdido todo o encanto. Ela era obrigada a ficar sentada, quietinha, o dia todo. Não podia comer com as mãos. Não podia correr ou pular, ou rolar na grama. E, quanto mais o tempo passava, mais falta ela sentia de seus lindos sapatinhos vermelhos. Mais importantes eles se tornavam.
O tempo passou...
...e chegou o dia de ser crismada - porque a velha senhora era muito religiosa e fazia questão de que a menina recebesse esse sacramento. Essa era uma grande ocasião para ela, que queria que a menina se apresentasse impecável na igreja. Costureiras foram chamadas para fazer o vestido. E a senhora levou a menina a um velho sapateiro aleijado, que era considerado muito bom, para fazer um par de sapatos novos para a ocasião especial.
Na vitrine do sapateiro havia um lindo par de sapatos vermelhos, do melhor couro. A menina escolheu os sapatos vermelhos, e a velha senhora, coitada, que enxergava tão mal que nem podia distinguir as cores, deixou que ela os levasse. O velho sapateiro, conivente, piscou para a menina e embrulhou os sapatos.
A entrada da menina na igreja, no dia seguinte, foi um escândalo. Todos olhavam para os sapatos vermelhos da menina. Como alguém podia se apresentar para a crisma com uns sapatos tão indecentes? A menina, entretanto, achava seus sapatos mais lindos do que qualquer coisa.
Quando chegou em casa, a tempestade estava armada. A velha senhora, que havia ouvido todos os comentários maldosos, proibiu a menina de usar novamente os tais sapatos. "Nunca volte a usar os sapatos vermelhos!”, ordenou, furiosa.
A menina, entretanto, estava fascinada pelos sapatos. No domingo seguinte, quando foi à missa de novo, colocou os sapatos - e, novamente, a velha senhora não percebeu de que se tratava, pois enxergava muito mal.
Na entrada do templo, havia um velho soldado ruivo, com o braço enfaixado. Ele se reclinou em frente à menina, dizendo "posso tirar o pó de seus lindos sapatos"? A menina, toda orgulhosa, deixou que ele o fizesse. Enquanto limpava os sapatos, ele disse para a menina "não se esqueça de ficar para o baile", e cantou uma musiquinha alegre.
Novamente, se repetiu a desaprovação de todos dentro da Igreja. A menina, fascinada com seus sapatos, nem ligava. Não escutava a missa, não via ninguém. Só olhava para seus lindos sapatos vermelhos.
Na saída, o velho soldado disse para a menina "que belas sapatilhas para dançar". E a menina, mesmo sem querer, começou a rodopiar ali mesmo.
Sem parar...
...ela continuou dançando, dando voltas, fazendo piruetas. Todos corriam atrás, assustados. O cocheiro da velha senhora tentou alcançá-la, mas foi em vão. Finalmente, um grupo de pessoas conseguiu segurá-la, e o cocheiro arrancou os sapatos vermelhos, com grande dificuldade, dos pés da menina.
Ao chegar em casa, a velha senhora guardou os sapatos no fundo do armário, e disse para a menina "agora me ouça, nunca mais use esses malditos sapatos vermelhos". A menina, entretanto, não conseguia parar de pensar nos sapatos. Muitas vezes abria o armário, e ficava espiando os seus lindos sapatinhos vermelho.
Algum tempo depois a velha senhora adoeceu. A menina, que já tinha que se comportar e ficar quieta, agora tinha que andar na ponta dos pés pela casa, para não perturbar. Estava enjoada, entediada. E não resistiu.
Abriu o armário...
... e pôs nos pés os sapatos vermelhos. Imediatamente, começou a dançar, rodopiar, bailar. Era como se os sapatos a guiassem. Eles a levavam, dançando, para onde queriam. E assim ela saiu de casa, dançando, e atravessou a propriedade, dançando, e chegou à floresta, dançando.
Na entrada da floresta, estava o velho soldado que havia encontrado na porta da igreja no dia da crisma. Ele estava encostado em uma árvore, e a saudou, repetindo "puxa, que lindos sapatos para dançar"! E lá se foi a menina, dançando, atravessando campos e cidades. Exausta, tentava, vez por outra, arrancá-los. Mas não conseguia.
Dançando, dançando, dançando, foi-se a menina pelo mundo. Tentou entrar em uma igreja para se benzer, mas o sacristão disse-lhe que não poderia, pois seus sapatos eram malditos. Tentou se aproximar de alguém, mas a maioria não queria ajudá-la, com medo de sua maldição. E os poucos que o faziam não conseguiam arrancar os sapatos malditos dos seus pés.
Por fim, exausta, a menina procurou o carrasco de uma aldeia, e lhe implorou que cortasse os sapatos. O carrasco tentou, mas não conseguiu. Desesperada, a menina disse "então corte-me os pés, não posso viver dançando".
O carrasco, penalizado e implorando perdão a ela e a Deus, cortou seus pés, com lágrimas nos olhos. E os seus pés, com sapatinhos vermelhos e tudo, continuaram dançando, dançando, dançando, pelo mundo afora.
Agora, a menina era uma pobre aleijada...
... e teve que aprender a viver dessa maneira. Sem sapatos vermelhos, e trabalhando como criada.
Os sapatinhos vermelhos: da moral de Christian Andersen ao feitichismo de Caio Fernando Abreu: